Órgão Oficial de Divulgação Científica da
Sociedade Brasileira de Videocirurgia

ISSN: 1679-1796
ANO 5 Vol.5  Nº 2 -Abr/Jun 2007

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Questões relacionadas à Aprendizagem Motora na
Videocirurgia

Questions related to the Motor Learning in the
Minimally Invasive Surgery

Marco Antônio Cezário de Melo


Chefe da Equipe de Cirurgiões da DIGEST
Cirurgião do Serviço de Cirurgia Geral do Hospital das Clínicas da UFPE.



Utilizando-se informações advindas de diversas áreas da ciência humana foram levantadas várias questões relacionadas à aprendizagem motora na videocirurgia. A psicologia educacional analisando o desenvolvimento da psicomotricidade, a educação física estabelecendo teoria para o controle do direcionamento manual e, juntamente com a fisioterapia específica, avaliando a propriocepção e o controle motor necessários ao desenvolvimento de habilidades motoras em decorrência de treinamento. A oftalmologia e a psicologia cognitiva direcionadas ao estudo da percepção visual, demonstrando os mecanismos de adaptação na ausência da visão binocular e da acomodação monocular para a avaliação da distância exocêntrica. Todos estes saberes se fazem importantes diante da necessidade da manipulação no plano fronto-paralelo, ambiente do exercício da videocirurgia convencional. Explicam o aprendizado desta nova abordagem cirúrgica que, através de treinamento, partindo de movimentos monitorados pela visão bidimensional, atingirão uma nova ordem e consistência - chegando à automatização.

Palavras-chave: Cirurgia Vídeo-Assistida, Aprendizagem, Desempenho Psicomotor, PercepÇÃo de Profundidade.

Using information of diverse areas of the human science were being some questions related to the motor learning in the minimally invasive surgery. The educational psychology analyze the development of the psicomotricity, the physical education establishing theory for the manual control aiming and, together with the specific phisioterapy, evaluating the proprioception and the motor control to the development of motor abilities in training result. The oftalmology and directed cognitive psychology to the studies of the visual perception, demonstrating the mechanisms of adaptation in the absence of the binocular vision and the room to monocular for the evaluation of in the distance exocentric. All these knowledge are important for the necessity of the manipulation in the front-parallel plan, environment of the exercise of the conventional minimally invasive surgery. They explain the learning of this new surgical boarding that, through training, leaving of movements monitored for the bidimensional vision, a new order and consistency will reach - arriving at the automatization.

Key words: Video-Assisted Surgery, Learning, Psychomotor Performance, Depth Perception.


Melo M.A.C. Questões relacionadas à Aprendizagem Motora na Videocirurgia. Rev bras videocir 2007;5(2):79-89.

Recebido em 04/08/2007

                                                              


Aceito em 14/08/2007




A

m 1956, Benjamin Bloom, psicólogo educacional da Universidade de Chicago, dividiu os objetivos educacionais da aprendizagem em 3 domínios: o cognitivo, o afetivo e o psicomotor. Enquanto o cognitivo é ligado ao saber e o afetivo aos sentimentos (posturas e emoções); o psicomotor é relacionado ao fazer (ações físicas e movimento).1
   Na aprendizagem da videocirurgia, é o domínio psicomotor o mais relacionado ao treinamento, desenvolvimento e formação das habilidades necessárias ao cirurgião.
   Segundo Arantes, três diferentes áreas de estudo tratam do domínio motor:
   · o controle - que tem por objetivo estudar e compreender como o ser humano organiza e controla suas ações através dos estudos das funções de diversas áreas cerebrais responsáveis pelos movimentos.
   · o desenvolvimento - que investiga as mudanças no ser humano em decorrência das alterações sofridas ao longo dos estágios de vida.
   · a aprendizagem - que estuda os mecanismos e processos subjacentes às mudanças de comportamento motor em função da prática, passando de um estado no qual não domina uma habilidade até que a execute com proficiência em decorrência de um período de prática.2
   Anita Harrow, em 1972, propôs uma taxonomia do domínio psicomotor em 6 níveis: reflexos, movimentos básicos, habilidades de percepção, capacidades físicas, movimentos específicos e comunicação não-verbal. Estas habilidades são desenvolvidas por todas as crianças durante seus estágios de vida (dos primeiros anos à idade adulta _ por volta dos 25 anos), no ambiente normal de percepção.3
   Ao se realizar um treinamento em videocirurgia fica clara a necessidade da aprendizagem ou reaprendizagem de algumas habilidades motoras, entendidas como as que exigem movimentos voluntários do corpo para se atingir metas.4 Estas habilidades motoras adquiridas através do treinamento ou prática têm um objetivo maior - atingir a proficiência. Para tal há uma exigência peculiar nos movimentos e especialmente no seu controle, pois a visão do campo operatório é mostrada através de uma tela de vídeo. É evidente que o ambiente a ser manipulado na videocirurgia, é inteiramente diferente do vivenciado pela cirurgia aberta. Trabalha-se em ambiente distinto da percepção habitual do ser humano.

CONTROLE DO DIRECIONAMENTO MANUAL

O primeiro a criar uma teoria abrangente da aprendizagem motora foi Adams, um pesquisador no campo da Educação Física. Conhecida como Teoria de Adams, despertou muito interesse durante a década de 1970, quando muitos pesquisadores tentaram determinar sua aplicabilidade à aquisição da habilidade motora. Seu aspecto mais importante refere-se ao circuito fechado no controle motor. Neste processo, o feedback sensorial é utilizado na produção contínua de um movimento habilidoso. Ao se realizar um movimento, a cada passo, este processo é re-avaliado através de informações sensoriais, para confirmação desta ação, comparando-a ao planejamento inicial deste movimento A idéia central é comparar o feedback sensorial do movimento dentro do sistema nervoso com a memória armazenada do movimento pretendido.5 (Figura-1)

Figura 1- Esquema do controle motor realizado pelo feedback sensorial (visual) durante todo o processo, se iniciando mesmo antes do movimento e continuando após atingir do alvo.


   Segundo Depra J. Rose, pesquisadora no campo da cinesiologia, a aprendizagem motora pode ser responsável por uma mudança relativamente permanente no comportamento motor. Esta alteração ocorreria em virtude da prática e poderia ser inferida pelo desempenho.6 A aprendizagem, de uma forma abrangente, é definida como um processo de aquisição de conhecimentos e a aprendizagem motora como um processo de aquisição e/ou modificação do movimento. A base fisiológica da aprendizagem motora é distribuída entre muitas estruturas cerebrais em níveis de processamento não se restringindo a um local do cérebro específico para a aprendizagem. A aprendizagem pode ser considerada ainda, como um continuum na capacidade de produzir ações hábeis enquanto que a memória seria a retenção e o armazenamento desse conhecimento ou capacidade.4
   Na aprendizagem da habilidade motora existe uma meta a ser atingida de forma voluntária que é alcançada através de movimentos do corpo ou parte dele. O termo movimento se refere à mudança de posição de um membro específico ou de uma combinação de membros dentro de um espaço em determinado tempo e ação, resultando em um conjunto de movimentos executados para se atingir uma meta. Para que se atinja esta meta é realizada uma ação motora monitorada pela informação sensorial. As duas informações sensoriais mais importantes no controle do movimento coordenado são a propriocepção e a visão.4 A propriocepção envolve a identificação senso-receptora das características do movimento do corpo ou membros, tais como: orientação, localização espacial, velocidade e ativação muscular. O feedback proprioceptivo é o grande responsável pelo controle do movimento coordenado. A visão, no entanto, de todos os sistemas sensoriais é o que predomina e se revela o mais confiável. A visão permite que o indivíduo identifique o objeto no espaço e determine seus movimentos, além de fornecer informação onde o corpo encontra-se no espaço, a relação de uma parte do corpo com outra e o movimento deste corpo.5
   Portanto, para que se realize um movimento de direcionamento manual é necessário que se mova um ou os dois braços ao longo de uma distância até um alvo. O papel da visão é extremamente importante no direcionamento e sua correção através de reajustes seqüenciais calculados por feedback. É importante desde que se inicia a fase de preparação da ação, passando pelo movimento real e terminando pela fase de conclusão. Na fase de preparação do movimento a visão determina qual a direção, a distância e o tamanho do alvo. No movimento real, ou movimento de alcance, a visão fornece informações sobre o deslocamento e velocidade do membro para posterior correção. Na fase final ou de conclusão do movimento de direcionamento manual, a visão reavalia todos os dados para que se atinja o alvo corretamente.

AMBIENTE DE PERCEPÇÃO NA VIDEOCIRURGIA

Na videocirurgia observa-se uma mudança radical do ambiente de percepção, especialmente em relação à propriocepção visual. Neste tipo de abordagem cirúrgica, o movimento de direcionamento manual é orientado pelo feedback de uma imagem indireta representada pela tela de vídeo onde se projeta a imagem que está sendo manipulada. Enquanto se manipula uma estrutura em um plano real a imagem do monitor que proporciona o feedback está sendo fornecida em ângulo distinto do direcionamento do próprio cirurgião. (Figura-2) Quando se utiliza uma ótica de 30º, existe uma alteração adicional em relação ao ângulo de visão dificultando a avaliação do movimento realizado. Como se não bastassem estas distorções de percepção, trabalha-se com uma noção imprecisa da distância. A imagem em tela só fornece duas dimensões, privando cirurgião e auxiliares da terceira dimensão, grande responsável pela noção de profundidade.

Figura 2 - O monitor mostra a visão captada pela ótica com angulação diferente da real e os instrumentos se movimentam em direções opostas ao realizado pela mão do cirurgião.


   A preensão é o ato de alcançar e segurar um objeto estático ou em movimento. A visão também tem um papel de importância na preensão. Desde a fase de movimentação real a mão é direcionada de forma correta para segurar o objeto. O passo seguinte ao movimento de direcionamento manual é o agarrar ou segurar, no qual a pessoa controla seus dedos para apreender o objeto. Finalmente ocorre a fase do cumprimento da ação, complementando o objetivo final de toda a ação. Várias características podem influenciar no controle da preensão de acordo com o objeto (tamanho, forma e textura), sua situação (localização e orientação) e requisitos da tarefa (velocidade e o que fazer com o objeto).5
   Na abordagem videocirúrgica são utilizados instrumentos longos que passam por pontos fixos (portais). Nesta situação a propriocepção pode ser ampliada ao instrumento utilizado, já que a extremidade deste passa a ser a continuação do corpo do cirurgião percebida por uma visão indireta em situação oposta à direção real. Ao se movimentar o membro para uma ação o instrumento toma a direção contrária ao do movimento realizado, já que o ponto fixo, situado no local onde o instrumento penetra no corpo, provoca uma situação de gangorra. (Figura-2) Quando da mobilização da ótica, que também ultrapassa pelo ponto fixo do portal, ao se tentar mostrar uma estrutura localizada abaixo, a tendência é, inicialmente, mostrar acima, só retornando ao alvo após percepção consciente do erro praticado. Somente o treinamento e posterior adaptação é que tornam estes movimentos incorporados, permitindo sua realização de forma automática sem necessidade de raciocínio prévio. Durante o treinamento percebe-se claramente uma evolução gradual do desempenho do aprendiz.
   Portanto, a ação motora se inicia pela localização do alvo sendo a visão a grande responsável por essa localização. Na percepção real, é comum que a cabeça e mesmo o tronco sejam utilizados para a localização do alvo, na procura da melhor localização de estruturas fora do alcance da visão. Na videocirurgia esta periferia mais remota somente é evidenciada com a movimentação coordenada do auxiliar que manipula a câmera, sendo este o primeiro motivo da necessidade de se trabalhar em equipe, pois o auxiliar-câmera passa a ser parte integrante do movimento do próprio cirurgião, ampliando seu campo visual. Esta movimentação coordenada é fundamental tanto na avaliação dos locais de colocação dos trocartes quanto na realização de suturas ou nós internos.
   Como dito anteriormente, após a localização do alvo vem a etapa do alcance, quando os braços através de movimento de direcionamento manual vão atingir o alvo, onde a função de feedback visual tem importância essencial. Em seguida ocorre a preensão que varia em função da localização, tamanho e formato do objeto que será alcançado.5 Na videocirurgia o movimento de preensão é sempre realizada por uma extensão da mão representada pela pinça ou outro instrumental manipulado pela mão do cirurgião ou auxiliar. Os movimentos do instrumental são cronometrados adequadamente ao transporte (durante a etapa do alcance) de forma a que se fechem sobre a estrutura anatômica no momento correto. Apesar de instrumentos similares aos anteriormente usados na cirurgia aberta, são mais longos e passam por um ponto fixo (portal de entrada) quando executam um movimento de gangorra ou de báscula, necessitando reaprendizagem para sua utilização. A preensão e a palpação são extremamente importantes na realização de procedimentos videocirúrgicos e efetivados indiretamente através da extremidade dos instrumentos, prejudicando sensivelmente a percepção tátil. Neste tipo de movimento, necessita-se trabalhar com um sentido de orientação diversa do ambiente normal da cirurgia aberta, exigindo reaprendizagem das habilidades de percepção e, principalmente, dos movimentos específicos descritos por Harrow na taxonomia do domínio motor.
   A preensão é extremamente importante na efetivação de procedimentos videocirúrgicos e é realizada indiretamente pela extremidade dos instrumentos. Ao mesmo tempo em que os instrumentos vão promovendo sua ação através de um movimento de direcionamento a uma determinada estrutura, o feedback visual vai determinando posição e abertura necessária do instrumento, bem como a força adequada à apreensão da estrutura alvo. É possível gerar comandos de movimentos, especificando as características do segurar, antes mesmo de se iniciar o próprio alcance.
   A manipulação ou tarefa seria a fase final caracterizada pela concretização do objetivo de toda ação realizada sendo responsável pela complementação da ação motora. Na videocirurgia corresponde a apreensão, tração, mobilização visceral, afastamento de estruturas anatômicas, divulsão tecidual, corte (com tesoura ou outros instrumentos específicos), coagulação (através de várias formas de energia), aspiração, irrigação, grampeamentos, clipagem, etc.

CAPACIDADES - HABILIDADES - DESEMPENHO

As capacidades individuais são inatas enquanto as habilidades podem ser desenvolvidas com a prática. Pessoas que possuem altos níveis de capacidade ao praticarem uma determinada tarefa, executam-na com altos níveis de performance. Parece haver tipos de capacidades distribuídas no sistema perceptivo-motor humano. Algumas capacidades dão suporte às ações de percepção e à tomada de decisão, enquanto outras embasam a organização e o planejamento de movimentos, além daquelas que contribuem para a produção real do movimento e para a avaliação do feedback. As diferenças individuais influenciam a performance e a aprendizagem dos indivíduos. Capacidades são traços herdados, estáveis e permanentes, reduzidas em número que embasam a performance de muitas habilidades, enquanto habilidades podem ser desenvolvidas e modificáveis com a prática, são em grande número e dependem dos vários subconjuntos de capacidades diferentes.4 Na videocirurgia as capacidades perceptivomotoras são fundamentais para o desenvolvimento de habilidades necessárias ao procedimento.
   A aprendizagem tem sido descrita como um processo de aquisição de conhecimento e o desenvolvimento motor a assimilação ou compreensão da aquisição ou modificação do movimento. A aprendizagem motora é sempre baseada no condicionamento do movimento pelo sistema nervoso, ou seja, a incorporação psíquica de atitudes motoras vinculadas à uma ação específica. Resulta da mudança da performance derivada da experiência visando uma adaptação a novas situações, inéditas, imprevisíveis, isto é, uma disponibilidade adaptativa à situações futuras. Aprendizagem pode ser definida ainda, como uma mudança interna no indivíduo decorrente de melhoria relativamente permanente do desempenho, resultante da prática. Desempenho é entendido como uma mudança temporária no comportamento motor, observada durante algumas sessões de prática.7 Desempenho de uma habilidade motora, portanto, seria o comportamento observável de um movimento ou ação motora. Existem algumas variáveis do desempenho (prontidão da pessoa, ansiedade criada pela situação, peculiaridade do ambiente, fadiga, etc.) e algumas características (aperfeiçoamento, consistência, persistência e adaptabilidade). A aprendizagem deve ser considerada como um aperfeiçoamento pessoal. Torna-se cada vez mais consistente à medida que o desempenho melhora, como resultado de grande persistência gerando adaptação variada no contexto global.5
   Na aprendizagem motora, avaliada pelo desempenho, existem mudanças percebidas na evolução da espécie, na maturação psicomotora individual e no desenvolvimento ao longo da vida. O comportamento motor passa por ciclos de estabilidade/instabilidade resultando em aumento de complexidade. Os esportes foram os grandes responsáveis pelo desenvolvimento motor do ser humano e atualmente os videogames trouxeram uma nova percepção dos movimentos, semelhante ao encontrado na videocirurgia. (Figura-3) Aprendizagem motora e desenvolvimento motor procuram explicar o mesmo fenômeno: a mudança no comportamento motor humano.8

AFERIÇÃO DE DISTÂNCIA PELO MONITOR - IMAGEM PICTÓRICA

A avaliação da distância vem se constituindo em um dos objetivos principais no estudo da percepção visual. A mensuração da distância egocêntrica avalia a distância entre o observador e um objeto. A medida da distância exocêntrica é representada pela distância entre dois objetos ou partes de um mesmo objeto.10 Os indicadores de profundidade são aqueles que permitem a visão tridimensional do espaço que nos cerca. Dentre eles os mais utilizados pelo homem são: a convergência binocular e a acomodação monocular. Enquanto a convergência binocular é fornecida pela angulação diferenciada de cada olho, distinta a cada distância (o ângulo de convergência é inversamente proporcional à distância sendo menor em distância gradativamente maior), a acomodação monocular, consiste na alteração da curva do cristalino, controlados pelos músculos ciliares que permitem a focagem do objeto (a convexidade do cristalino aumenta quando o objeto está mais próximo).11

Figura 3 - O desenvolvimento das habilidades motoras necessárias à videocirurgia passa por atividades prévias em jogos individuais, coletivos e principalmente dos videogames.


   Quando da utilização de um monitor nenhuma destas formas de avaliação de distância está disponível. Nestas condições, a visão binocular é prejudicada por captar uma única informação advinda da tela do monitor, cuja imagem não fornece a angulação diferenciada necessária à percepção de profundidade. A desfocagem provocada pela visão de pontos que se afastam além ou aquém do ponto de foco determina uma aberração cromática, distinguida por uma aura azul para os objetos além do foco e amarelada para os mais próximos. Estas alterações não se apresentam na visão do campo operatório vista pelo monitor, pois a imagem projetada no mesmo encontra-se devidamente focada.11 As imagens de distâncias diferentes mostradas na tela, mantêm-se focadas pelo mecanismo óptico da câmera utilizada na sua captação.
   Na videocirurgia clássica, usando monitores para se observar o campo operatório, restam a perspectiva de movimento e alguns indicadores visuais monoculares para avaliar a distância entre as estruturas a serem manipuladas. A perspectiva de movimento ajuda a perceber o posicionamento relativo pela percepção da rapidez aparente dos objetos em relação inversa das distâncias físicas ao ponto fixado no espaço. É o que ocorre quando se movimenta uma estrutura com o olhar fixado à mesma. As estruturas além desse ponto parecem mover-se no mesmo sentido, enquanto as mais próximas parecem mover-se em sentido contrário - tanto mais rápidos quanto maior a distância do ponto de fixação. Alguns têm chamado este fenômeno de paralaxe, embora este termo seja mais utilizado para definir a alteração de um objeto contra um fundo devido ao movimento do observador e não da estrutura observada. Alguns autores acreditam que esta noção de distância pode estar relacionada com a alteração da textura provocada pelo movimento.10
   Os indicadores visuais monoculares, chamados também de "pictóricos" por terem sido utilizados pelos artistas da renascença para dar impressão de profundidade aos seus trabalhos. São usados pelo cérebro para interpretar a profundidade na imagem plana que chega à retina. (Figua-4) São elas: dimensão relativa, convergência ou perspectiva, dimensão familiar ou conhecida, oclusão ou sobreposição, textura, elevação no plano horizontal, sombra, luminosidade ou brilho e perspectiva aérea.11 Todas elas são utilizadas de forma a fornecer uma avaliação aproximada, ou um indício, da distância egocêntrica ao cirurgião na abordagem videocirúrgica.
   A dimensão relativa está relacionada ao tamanho das estruturas que estão sendo manipuladas, aumentando ou diminuindo com a distância. A perspectiva, através da convergência das linhas pode ser observada quando do aparecimento na tela de instrumentos utilizados na videocirurgia que têm linhas paralelas. O conhecimento das estruturas anatômicas e suas dimensões habituais fornecem, por si só, uma idéia da sua distância. Quando uma estrutura ou um instrumento passa na frente de outro seguramente este está mais próximo do que foi encoberto, fornecendo uma informação de profundidade, embora puramente ordinal. A textura das superfícies regulares, além de influenciar na perspectiva de movimento já referida, pode fornecer também uma informação estática da distância. Quando olhamos o fígado através do monitor sabemos que o que se encontra acima (a cúpula diafragmática) está mais distante e o que está abaixo (alças intestinais) está mais perto provocando o mesmo efeito da visão do horizonte onde o que está acima (céu) encontra-se mais distante do que o localizado abaixo (terra). A sombra provocada pela iluminação nos fornece uma orientação situacional relativa, assim como a luminosidade e o brilho que é tanto maior quanto mais perto da ótica e fonte de iluminação. A perspectiva aérea provocada pelo gás em suspensão na cavidade abdominal condiciona diminuição do contraste das estruturas mais distantes. Tudo isso fornece indícios indiretos da noção de profundidade sem, no entanto, restaurar completamente a perda da visão tridimensional fornecida pela convergência binocular e acomodação monocular, fundamentais, especialmente na avaliação da distância peripessoal (até 30 metros). 10

MANIPULAÇÃO NO PLANO FRONTO-PARALELO - PERCEPÇÃO ESPACIAL

A manipulação em tela de figuras fixas ou em movimento, se iniciou com o videogame. O primeiro jogo eletrônico (Tennis for Two) foi criado em 1958 por William Higinbotham utilizando-se de um tubo de raios catódicos. Deve-se a Ralph Baer, inventor americano, nascido na Alemanha que criou o console para videogames em 1966 (patenteado em 1968) o uso destes jogos utilizando-se da tela de televisão. Somente no início da década de 70, quando já havia mais de 40 milhões de televisões vendidos nos Estados Unidos, foi que a Magnavox, firma que adquiriu a patente deste console, disseminou a utilização destes jogos.12

Figura 4 - Indicadores visuais pictóricos usados pelo cérebro para interpretar a profundidade na imagem plana: dimensão relativa, convergência ou perspectiva, textura e elevação no plano horizontal.


   A partir desta evolução a humanidade começou a criar habilidades no sentido de manipular estruturas através de imagens em tela. Com a utilização do videogame criou-se um ambiente diferente para a execução de movimentos. Iniciava-se assim, um aprendizado de uma ação motora utilizando uma visão em plano distinto, denominado de fronto-paralelo. Desde a localização do alvo até a realização da tarefa, passando pelas etapas do movimento de alcance e de apreensão, o feedback utilizado apresentava angulações e situações nunca dantes encontradas. Manipulava-se um console guiado por uma imagem em plano inteiramente diferente. Na videocirurgia se manipula um ser humano (ou animal) em um plano horizontal orientado por uma visão transmitida a um monitor de vídeo em posição distinta da real. Esta é a primeira grande dificuldade dos que vão praticar esta nova abordagem cirúrgica. Estudos têm demonstrado que a utilização prévia de videogame facilita o aprendizado da videocirurgia.14
   Outro problema na utilização do plano fronto-paralelo é a tarefa de orientação espacial envolvendo a forma na qual o ser humano representa a geometria do espaço nessas condições. As angulações são observadas de forma indireta pelo observador. Estudos recentes têm avaliado a noção de direcionamento sob condições artificiais, tanto no manuseio de uma tela, assim como no uso de simuladores, ou mesmo, no espaço virtual.
   Nas últimas décadas, inúmeras mudanças de paradigmas e emergência de novas teorias têm se observado no campo da percepção. A interdisciplinaridade entre áreas que estudam o movimento humano e as neurociências tem identificado variáveis perceptuais no ser humano que interferem no binômio percepção-ação. Acredita-se que a construção do espaço tridimensional depende da mobilidade e sua funcionalidade ao longo do tempo, ou seja, a internalização das propriedades do espaço depende das jornadas locomotoras prévias, assim como das experiências manipulatórias desde a infância. 15
   A orientação no espaço é uma habilidade extremamente importante para os que realizam a videocirurgia e parece estar relacionada ao desenvolvimento durante toda a vida. Ações diárias como transportar ou levantar objetos de dimensões e pesos diferentes implicam em inúmeras experiências entre o corpo em movimento, forças gravitacionais, atritos e propriedades físicas dos objetos. Estas interações são resultados de uma série de contrações musculares que garantem níveis posturais variados, concomitante com tarefas específicas.16
   A partir do posicionamento dos trocartes o cirurgião realiza uma série de avaliações e deduções geométricas com projeção de angulações e movimentos que serão realizados durante o procedimento usando toda a noção espacial previamente adquirida. No momento em que utiliza a força gravitacional para o afastamento visceral do campo operatório o mesmo está se valendo de sua percepção espacial para determinar o posicionamento adequado da mesa operatória.
   O espaço visual é caracterizado por propriedades geométricas percebidas, tanto em relação à distância (egocêntrica e exocêntrica) quanto por outras variáveis como forma, orientação, etc. Esta distância percebida através do espaço visual, não guarda relação simples com a distância física real. A relação entre a distância percebida e a real depende substancialmente do ambiente no qual as distâncias são estimadas, bem como da combinação de indícios de distâncias presentes no ambiente. Quando na ausência de visão binocular e focagem, como na imagem pictórico-fotográfica que é semelhante à imagem fronto-paralela produzida por um monitor, as distâncias observadas diferem das correspondentes distâncias físicas. 10

AQUISIÇÃO DE CONSISTÊNCIA - AUTOMATIZAÇÃO MOTORA

O estágio inicial da aprendizagem motora é caracterizado pela descoordenação e inconsistência até se atingir a ordem e a consistência _ automatização.9 A aprendizagem parece não se encerrar na fase de automatização. Evidente que o sistema necessita se estabilizar, o que não acontece de forma linear, com os componentes do sistema conectando-se até que ocorra a interação desejada e sobrevenha um padrão.17
   Estudos da aprendizagem motora descrevem passagens por estágios que evoluem de uma fase de elevado número de erros de performance (inconsistência e alta demanda de atenção) para a execução da habilidade em estágios nos quais mostram consistência (menor incidência de erro e pequena demanda de atenção) chegando a uma estabilização de performance, que culmina com a automatização. Cada momento da prática é um momento de aprendizagem, reforçando as habilidades adquiridas e aplicando-as às novas situações. Embora a aprendizagem não seja diretamente mensurável, pode ser inferida por meio do desempenho. Quando o resultado torna-se estável e preciso conclui-se que, estruturalmente, alguma competência foi formada, atingindo-se o ponto de proficiência. No entanto com o aumento da complexidade e a implementação de novas tecnologias, ocorre a necessidade de aquisição de novas habilidades motoras o que faz com que a as mesmas não finalizem com a automatização. A aprendizagem é contínua, sofrendo um aumento crescente de complexidade.13 (Figura-5)

Figura 5 - O crescente desenvolvimento tecnológico traz a necessidade de aquisição de novas habilidades motoras exigindo um novo período, até se atingir novamente a automatização.


   Após estas colocações parece clara a necessidade de se iniciar o treinamento em videocirurgia pela criação de um ambiente similar, onde se realize inicialmente um treinamento manipulando-se estruturas ou objetos colocados em espaço onde não se tenha visão direta. Vistos unicamente através de um monitor, são manipulados através de instrumentos longos que ultrapassem um ponto fixo. Interessante ainda, que existam nesse ambiente, estruturas semelhantes às vísceras, com alguma mobilidade para serem alteradas pela força da gravidade através da mudança de posição, mimetizando a variação de decúbito da mesa operatória. Com isso reproduzir-se-á ambiente semelhante ao da videocirurgia. Caixas foram desenhadas para este treinamento, denominadas de "caixas pretas". Desde as mais simples a modelos mais sofisticados, são simuladores, necessários para a manipulação das imagens virtuais.
   Para se atingir esta consistência, ou se chegar à automatização motora necessária a realização plena da videocirurgia, um caminho terá que ser percorrido, com menor ou maior dificuldade, dependendo das capacidades individuais e do desenvolvimento de habilidades motoras que o cirurgião adquiriu ao longo da vida. Depois de vencida esta adaptação é que se inicia a Curva de Aprendizagem inerente a cada tipo de procedimento cirúrgico a ser realizado com níveis diferentes de dificuldades. Parece lógico que o aprendiz deva galgar um degrau por vez... Sem queimar etapas... Vencer as dificuldades passo a passo.18
   Nem por um momento pode se duvidar que o futuro desta abordagem encontra-se relacionada à implantação de novas tecnologias. Certamente, estas provocarão nova desestabilização na performance do cirurgião, desafiando-o a dar mais um passo na aprendizagem - um reforço a suas habilidades adquiridas, aplicando-as a estas novas situações.

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Endereço para correspondência

MARCO ANTÔNIO CEZÁRIO DE MELO
Rua Afonso Celso, 66 apto 1501
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E-mail: cezario@clinicadigest.com.br