ANO 04 Nº 7 - Maio de 2001


COLECISTECTOMIAS E APENDICECTOMIAS VIDEOLAPAROSCÓPICA NO CURSO DO SEGUNDO E TERCEIRO TRIMESTRE DE GESTAÇÃO

CHOLECYSTECTOMIES AND APPENDECTOMIES VIDEOLAPAROSCOPIC DURING SECOND AND THIRD TRIMESTERS


Cláudia Márcia dos S.Escáfura Ramalho(1)

Antônio de Pádua(2)


RESUMO

Como as indicações dos procedimentos videocirúrgicos continuam a se expandir, o número de contra-indicações formais está se tornando cada vez menor. Assim a gravidez, ainda considerada por muitos como uma contra-indicação ao acesso laparoscópico aos procedimentos cirúrgicos no segundo e terceiro trimestres, em função do risco de ferida uterina, risco fetal no momento de criação do pneumoperitônio, não representa um obstáculo à laparoscopia e, respeitando-se certas precauções técnicas e em mãos habilidosas pode constituir um excelente método terapêutico. A cirurgia abdômino-pélvica não obstétrica durante a gravidez é agravada por uma taxa não negligenciável de complicações materno-fetais ligadas ao atraso no diagnóstico e terapêutica aliadas à gravidade da patologia subjacente. Apresentamos oito pacientes submetidas à videolaparoscopia por urgências abdominais cirúrgicas (cinco apendicectomias e três colecistectomias, realizadas no segundo e terceiro trimestres da gravidez, descrevemos detalhes técnicos, resultados e discutimos a partir de uma análise retrospectiva, os riscos de realização do procedimento.

UNITERMOS: Gravidez, Cirurgia, laparoscopia.



INTRODUÇÃO

A frequência de procedimentos cirúrgicos não obstétricos durante a gravidez é baixa, aproximadamente 2 por 1000 casos, não havendo referências na literatura que malformações congênitas possam ser causadas por cirurgia realizada durante a gravidez.
    As modificações do organismo materno observadas ao longo da gravidez explicam os quadros clínicos e biológicos encontrados; alterações, frequentemente enganosas, são fonte de hesitação, de erros diagnósticos e quase sempre de atraso terapêutico. Apesar do quadro clínico fugir dos padrões comuns, requer tratamento de urgência. A gravidade da patologia e a demora em assumir uma posição vão condicionar o prognóstico materno e fetal2,3,8,9,10. Para muitos a vídeo-laparoscopia continua ainda contra-indicada no segundo e terceiro trimestres da gravidez em razão do risco fetal ligado à hiperpressão abdominal, à utilização do dióxido de carbono (CO2) e ao risco de ferida uterina durante a intervenção. Entretanto, o interesse diagnóstico e terapêutico que ela traz deve torná-la um meio de exploração e de tratamento de primeira intenção.
    Dentre as afecções inflamatórias intra-abdominais durante a gravidez, a apendicite aguda é a mais frequente. Apendicectomia por vídeo-laparoscopia é nos dias de hoje um procedimento bem estabelecido na apendicite aguda sendo realizado com sucesso em todas as fases da apendicite: catarral, supurativa e gangrenosa. A apendicite aguda na gestação requer avaliação e terapias cirúrgicas urgentes. A demora no diagnóstico representa o risco mais significativo de consequências nefastas tanto para a mãe quanto para o feto.
    O objetivo deste trabalho é apresentar a técnica vídeo-laparoscópica e os resultados das pacientes submetidas a este método durante o segundo e terceiro trimestre de gestação

MATERIAL E MÉTODO

Trata-se de uma análise retrospectiva de novembro de 1998 a dezembro de 2000. Durante este período oito intervenções cirúrgicas por patologias abdominais foram realizadas durante à gravidez, sendo seis no segundo trimestre e duas no terceiro trimestre. Todas as intervenções foram realizadas por acesso laparoscópico. Não ocorreram conversões. A idade média das pacientes era de 23,4 anos (20-33), a idade gestacional média de 20 semanas de amnorréia. Todas as pacientes foram operadas num contexto de urgência diante de uma síndrome abdominal aguda. QUADRO
    


Caso

Idade

Tempo
SA

Diagnóstico cirúrgico

Cirurgia

Histologia

Evolução
Tempo(AS)
Peso(g)

1

20

26

Apendicite
aguda

Apendicectomia

Apendicite
aguda

40
3100

2

29

28

Apendicite
aguda

Apendicectomia

Apendicite
aguda

40
3200

3

23

16

Apendicite
aguda

Apendicectomia

Apendicite
aguda

40
3500

4

25

18

Apendicite
aguda

Apendicectomia

Apendicite
aguda

39
3000

5

33

18

Apendicite
aguda

Apendicectomia

Apendicite
aguda

38
2850

6

24

17

Colecistopatia
litiásica

Colecistectomia

Colecistite
aguda

39
3000

7

22

18

Colecistopatia
litiásica

Colecistectomia

Colecistite
aguda

40
3050

8

30

20

Colecistopatia
litiásica

Colecistectomia

Colecistite
aguda

39
2860

Quadro I - Série durante a gravidez.

As pacientes apresentavam dor no hemi-abdomen direito, sendo mais localizada no quadrante superior direito (nas colecistopatias litiásicas), na fossa ilíaca direita (nas apendicites agudas) ou dor abdominal difusa nos casos com peritonite. Apresentavam náuseas, vômitos e temperatura média em torno de 37,6ºC.
    Abdomens gravídicos, com fundos uterinos compatíveis às idades gestacionais e, nas gravidezes do terceiro trimestre, os fetos encontravam-se em situação longitudinal, apresentação cefálica com dorso à esquerda.
    Os leucogramas apresentavam leucocitose com desvio à esquerda, chegando a 25.000 mm3 nos casos com peritonite. Presença de granulações tóxicas grosseiras nos neutrófilos.
    Além do diagnóstico clínico e laboratorial o ultra-som auxiliou tanto na identificação da patologia básica como no grau de comprometimento inflamatório peritoneal.
    O exame obstétrico e cardiotocográfico era normal em todos os casos.

Técnica operatória

As pacientes foram submetidas à cirurgia sob anestesia geral com intubação endotraqueal, colocadas em posição de litotomia modificada. A mesa cirúrgica levemente desviada para a esquerda, o que além de melhorar o campo cirúrgico desloca o útero de cima da veia cava inferior. Passadas sondas nasogástrica e vesical (Foley nº 14).
    Após incisão transversa supra umbilical de 1 cm de comprimento foi passado o primeiro trocarte de 10 mm sob visão direta (técnica de Hasson). A seguir, realizado o pneumoperitônio lento e progressivo com CO2, mantendo-se o insuflador com pressão máxima de 10 mm Hg. Introdução do laparoscópio de 30ºC acoplado à microcâmera. A cavidade abdominal foi inspecionada. Os outros trocartes de 10 mm e 5 mm foram colocados sob visão direta tendo-se em conta o volume uterino, a localização e o tipo de patologia apresentada.
    Uma outra opção à técnica aberta para a colocação do trocarte inicial é um local alternativo de inserção. Acima de 20 semanas de amnorréia o fundo uterino é demarcado com a ajuda de um lápis dermográfico eventualmente ajudado por uma ecografia pré-operatória. A agulha de Verres é introduzida no hipocôndrio esquerdo sobre a linha médio-clavicular a 2-3 cm sob o rebordo costal e o pneumoperitônio criado com uma pressão intra-abdominal máxima controlada de 10-15 mm Hg (risco aumentado de doença tromboembólica31,47,54,60. O trocarte de 10 mm destinado ao laparoscópio é introduzido a meio caminho entre o apêndice xifóide e o ponto de referência cutâneo do fundo uterino.
    Os gestos operatórios foram realizados evitando-se toda manipulação uterina e, quando necessário o útero foi suavemente afastado com instrumental não traumático. Deu-se preferência a coagulação bipolar. Ao fim de cada intervenção as goteiras parieto cólicas foram lavadas exaustivamente, assim como, se necessário, toda a cavidade peritoneal. As peças operatórias foram retiradas em dedos de luvas ou bags através dos trocartes de 10 mm da parede abdominal.
    Uma monitorização do ritmo cardíaco fetal foi realizada no pré e pós-operatório. Não foram realizadas colangiografias per-operatória. Em caso de necessidade, se possível, deveria ser colocado sobre o útero um protetor de chumbo para proteger o feto de radiação.

Evolução materna e obstétrica:

Os pós-operatório foram simples, a duração média de internação 48 horas. Nas pacientes com peritonite, o íleo pós-operatório foi mais prolongado o que exigiu um período de internação de 4 dias.
    Durante o período pós-operatório imediato, nenhuma complicação fetal sobreveio e as pacientes tiveram uma gravidez de evolução normal até o terceiro trimestre.
    Os nascimentos tiveram lugar em média ao término de 38 SA (38-40), com peso médio de g (2860–3500g) e o exame pediátrico foi normal para todos os recém-nascidos.

DISCUSSÃO

A literatura sobre cirurgia endoscópica durante a gravidez consiste somente de relatos de casos. Entre 1987 e 1997 um total de 112 cirurgias laparoscópicas, a maior parte delas colecistectomias, durante gravidez foram relatadas. Em geral os resultados para a mãe e o bebê foram excelentes, com nenhuma morte materna e sem risco adicional para o feto. Somente Amos et cols descreveram quatro casos de morte fetal seguindo uma cirurgia laparoscópica em mulher grávida.
    Revendo dados estatísticos, observamos que existe relação entre cálculo biliar e o número de gravidezes. Os estudos de GREPCO e Sirmione provaram que o aumento de risco relativo em cálculo biliar devido e gravidez é mais elevado em mulheres mais jovens.
    As colecistectomias são realizadas durante a gravidez numa taxa de 1 a 6 por 10.000 casos ,sendo maior número realizadas durante o primeiro e o segundo trimestres. Curiosamente observou-se que os sintomas já estavam presentes em mais de 50% dessas pacientes antes do período gestacional.
    Se a cirurgia é feita por doença calculosa biliar não complicada, não existe aumento na mortalidade materna quando comparado com controles não grávidas; e a taxa de morte fetal está em torno de 5%.Se a cirurgia tem que ser realizada por doença calculosa biliar complicada (pancreatite) a mortalidade materna sobe para 15% e perda fetal para 60%.
    A conduta recomendada pela literatura para a doença do trato biliar durante a gravidez é tratamento não operatório inicial. Se a cirurgia é necessária após falha do tratamento conservador (ex. episódios recorrentes de dor abdominal severa ou perda de peso gestacional), ela é preferencialmente executada durante o segundo trimestre. Nesta ocasião o período de principal risco de abortamento espontâneo está superado, a organogênese está completa, a indução de trabalho de parto prematuro é menos provável, e o útero não está demasiadamente grande para cirurgia.
    A apendicectomia convencional foi bastante estudada na gravidez, entretanto são escassos os registros e análises de apendicectomia laparoscópica em pacientes grávidas. A apendicite ocorre com mais frequência durante os dois primeiros trimestres numa proporção de 1 para 2000 casos. Nos primeiros meses os sintomas não diferem daqueles apresentados pela mulher não grávida. À medida que a gestação progride o ceco é deslocado lateral e superiormente pelo útero aumentado de volume. Desta forma o epiploon terá mais dificuldade de bloquear o processo inflamatório, resultando no aumento da incidência de rotura apendicular e peritonite difusa. Esses fatos são tão expressivos que provocam o parto prematuro em muitas pacientes e o prognóstico do feto fica por conta da sepse sobre o organismo materno.
    Nas apendicectomias realizadas por apendicite aguda a mortalidade materna é incomum durante o primeiro trimestre, mas aumenta com a idade gestacional avançada. A taxa de morte fetal está em torno de 5% em casos de apendicite aguda, mas sobe para 20% em casos de apendicite com perfurações e peritonites.

CONCLUSÃO

A cirurgia laparoscópica na gestante não torna a doença nem mais nem menos grave. Seu objetivo é tornar o tratamento menos agressivo com mais rápida e segura recuperação. A oportunidade de se diminuir a agressão cirúrgica, principalmente na parede abdominal, tem seu espaço garantido nos procedimentos cirúrgicos videolaparoscópicos durante a gestação como têm demonstrado alguns autores e como também tentamos demonstrar. A dor pós-operatória mínima reduzindo a drepressão fetal pelo uso de analgésicos, a baixa incidência de herniação incisional, o retorno rápido a dieta plena eliminando o stress nutricional para o feto são vantagens desta técnica.
    Existem evidentemente limitações importantes ao método endoscópico durante a gravidez: a experiência do cirurgião, o nível do fundo uterino com limitação do campo operatório, a obesidade da parede abdominal e o próprio risco da anestesia em geral. As nossas observações coincidem com o relato de Semm et cols. que assinalou que a gravidez não é uma contra-indicação à laparoscopia em geral. Os riscos potenciais de anestesia são, às vezes, mais importantes que os riscos da cirurgia laparoscópica. A posição do fundo uterino é decisiva na viabilidade do procedimento laparoscópico, e a pressão de insuflação do pneumoperitônio não parece ser um problema, dado a força muscular do útero.



SUMMARY

The indications about videolaparoscopy procedures in surgery, are still expansioning and their numbers about formal contraindications are each time decreasing.
    Pregnancy, still considered like a contraindication to laparoscopy surgery’s use at first and second trimester, is safe, even though the uterine and fetal troubles; one of them the pneumo peritoneum’s criation, but it’s necessary that we respect some techniques and look for na experienced surgeon to perform the surgery . Abdominal surgery, during pregnancy has immense difficulties to detect statistically significant differences in fetal outcome. These difficulties are recognized and they could prevent hazardous consequences of any problem found in the abdomen. We present eight patients that underwent to some urgencies abdominal surgery (five appendectomies and three (cholecystectomies ) performed at second and third pregnancy’s trimester, describing technical details, outcome by initially analysis and procedure’s criterions.

Keywords: Pregnancy, Surgery and Laparoscopy


REFERÊNCIAS

1.Batallan A; Benifla JL; Panel P; Dorin S; Darai E; Madelenat P / Chirurgie Laparospique au deuxieme trimestre de la gorssesse: indications, technique et retentissement foetal. A propos de neuf observations et revue de la litterature – Ann Chir. 53:285, 1999
2.Holthausen UH; Mettler L; Troidl H / Pregnancy: A contraindication? (indentificado) MEDLINE – Word J. Surg. 23:856, 1999.
3.Kammerer, W.S. : Nonobstetric surgery during pregnancy. Med. Clin.North Am. 63:1157,1979
4.Hill, L.M. Johnson, C.E., Lee, R.A.: Cholecystectomy in pregnancy. Obstet. Gynecol. 46:291, 1975
5.Printen, K.J., Ott, R.A: Cholecystectomy during pregnancy. Am. Srug. 44:432, 1978
6.Arvidsson, D., Gerdin, E.: Laparoscopic Cholecystectomy during pregnancy. Surg. Laparrosc. Endosc. 1:193, 1991
7.Morrell, D.G., Mullins, R., Harrison, P.B.: Laparoscopic Cholecystectomy during pregnancy. In symptomatic patients. Surgery 112:856, 1992
8.Soper, N. J., Hunter J.G. Petrie, R.H.: Laparoscopic Cholecystectomy during pregnancy. Surg. Endosc. 6:115, 1992
9.Soper, N.J.: Effect of nonbiliary problems on Laparoscopic Cholecystectomy, Am. J. Surg. 165:522, 1993

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Antonio de Pádua Medeiros de Carvalho
Endereço para correspondência
Rua Rui Palmeira 552 - Ponta Verde
Maceió - Alagoas - 57 035 250


 

(1) Cirurgiã Geral Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Laparoscópica (SOBRACIL); Presidente da Regional dos Lagos da Sociedade de Cirurgia Videoendoscópica do Estado do Rio de Janeiro (SOCIVERJ); Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (TCBC); Secretária Adjunto da SOBRACIL.

(2) Cirurgião da Santa Casa de Misericórdia de Maceió ; Chefe de Clínica Cirúrgica do Hospital Escola Dr. José Carneiro da Faculdade de Medicina de Alagoas