Órgão Oficial de Divulgação Científica da
Sociedade Brasileira de Videocirurgia

ISSN: 1679-1796
ANO 1 Vol.1  Nº 4 - Out/Dez 2003

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Ptose Esplênica Corrigida por Videolaparoscopia em Paciente com Doença de Gaucher

Splenic Ptosis Fixed by Videolaparoscopy in a Gaucher Disease Patient

Maria Tereza Machado de Paula1, Mario Victor de Faria Nogueira2, Maria Christina Jorge Pereira3, Rogério Vivaldi4


Centro para o Tratamento Cirúrgico da Obesidade Mórbida, Hospital São Camilo, São Camilo, São Paulo, Brasil


RESUMO


A Doença de Gaucher é a mais comum das esfingolipidoses. É hereditária, autossômica-recessiva e a primeira com tratamento específico. A Terapia de Reposição Enzimática (TRE) mudou a história natural desta doença. Muitas complicações agudas e crônicas podem, agora, ser evitadas. Complicações que ameaçam a vida ainda são vistas, a exemplo da ptose esplênica. Nós descrevemos o caso de paciente do sexo feminino, portadora de Doença de Gaucher que foi submetida a fixação do baço por videolaparoscopia.

Palavras-chave: PTOSE ESPLÊNICA/cirurgia; ESPLENOMEGALIA/cirurgia; BAÇO/cirurgia; DOENÇA DE GAUCHER; LAPAROSCOPIA CIRÚRGICA; VIDEOLAPAROSCOPIA.

PAULA MTM, NOGUEIRA MVF, PEREIRA MCJ, VIVALDI R. Ptose Esplênica Corrigida por Videolaparoscopia em Paciente com Doença de Gaucher. Rev bras videocir 2003;1(4):143-146



A

doença de Gaucher é a mais comum das glicoesfingolipidoses. É hereditária, autossômica recessiva e a primeira com tratamento específico. A alteração genética está localizada no "cromossomo 1" 1, sendo descrito alta prevalência em judeus Ashkenazi2. Ocorre deficiência da enzima ß-glicocerebrosidase. Os pacientes apresentam, em geral: anemia, trombocitopenia e hepatoesplenomegalia.

Terapia de Reposição Enzimática vs Esplenectomia

   Em 1991, surgiu a terapia de reposição enzimática (TRE) sendo inicialmente com alglucerase (enzima obtida de placentas humanas) e mais recentemente com a imiglucerase (que é análoga a enzima humana, obtida pela tecnologia do DNA recombinante).
   Com o surgimento da TRE, a esplenectomia (parcial ou total), que era um procedimento comum, tem hoje indicações muito restritas.

Ptose Esplênica e Doença de Gaucher

   A ptose esplênica surge pela diminuição do volume do baço durante o tratamento. Embora rara nestes pacientes, se presente deve ser corrigida, já que o alongamento do pedículo e ligamentos esplênicos (causado pela esplenomegalia inicial, quando da redução do baço) favorece o aparecimento de complicações graves, tais como o abdome agudo por volvo esplênico ou por trauma que levariam à esplenectomia total, com piora da doença e suas complicações.

RELATO DO CASO

   Os autores descrevem o caso de uma menina que teve o diagnóstico de Doença de Gaucher aos 4 anos de idade.
   Aos 12 anos (em Junho/1995) apresentava esplenomegalia volumosa, que alcançava a pelve, quando iniciou TRE com alglucerase (40 U/kg peso a cada 14 dias). Houve regressão significativa da víscera.
   Após quatro anos de TRE (em Novembro/1999) foi observada a presença do baço em região hipogástrica (Figura 1) deixando o Espaço de Traube livre, caracterizando a ptose esplênica. Nesta ocasião realizou ultra-sonografia, abdominal e pélvica, que revelou baço aumentado (17,5 cm em seu maior diâmetro) e móvel a manipulação externa.
   Em Outubro/2001, já com 18 anos de idade, a paciente foi submetida à fixação do baço por videolaparoscopia.

Figura 1 - Ultra-sonografia revelou baço em região hipogástrica caracterizando a ptose esplênica 17,5 cm em seu maior diâmetro. O Espaço de Traube era livre.


TÉCNICA CIRÚRGICA

   O acesso à cavidade abdominal foi realizado através de incisão supra-umbilical de 10mm e, através de agulha de Veress, criou-se pneumoperitônio de 14 cm de H2O. Por essa incisão, passamos um trocarte de 10 mm, para uma ótica de 30°.
   A inspeção da cavidade mostrou o hipocôndrio esquerdo vazio, com o baço aumentado, ocupando a região hipogástrica e a fossa ilíaca esquerda. Seus ligamentos eram frouxos e o pedículo principal longo e tortuoso.
   Para a mão esquerda do cirurgião foi feita uma punção de 10 mm no epigástrio, na linha média, em situação sub-xifoidiana e para a mão direita outra punção de 10 mm, em flanco esquerdo correspondendo a linha axilar média (Figura 2).

Figura 2 - As portas laparoscópicas empregadas. Para a mão esquerda: de 10 mm no epigástrio (na linha média) em situação sub-xifoidiana; e para a mão direita: de 10 mm, em flanco esquerdo correspondendo a linha axilar média.



   Após a entrada na cavidade, utilizamos o bisturi harmônico a fim de criar um espaço em situação retrogástrica, sendo seccionados vasos polares superiores do baço, de maneira a proporcionar condições de se passar uma tela de polipropileno, envolver o órgão e fixá-lo à parede lateral do abdome e ao diafragma com um grampeador próprio para hernioplastia inguinal laparoscópica.
   Em seguida, o baço foi medido com auxílio de pinças de tamanho conhecido, sendo recortada uma tela de polipropileno de 25 cm de largura por 23 cm de comprimento, uma abertura, com cerca de 5 cm de largura, em sua metade, permitiu a acomodação do pedículo principal do baço (Figura 3).

Figura 3 - O baço foi medido com auxílio de pinças de tamanho conhecido, sendo recortada uma tela de polipropileno de 25 cm de largura por 23 cm de comprimento. Uma abertura, com cerca de 5 cm de largura, em sua metade, permitiu a acomodação do pedículo principal do baço.



   Essa tela foi introduzida na cavidade abdominal através de um portal do qual retiramos o trocarte e fixada ao diafragma e a parede lateral do abdome à maneira descrita (Figura 4).

Figura 4 - A tela foi introduzida na cavidade abdominal através de um portal do qual retiramos o trocarte, sendo fixada ao diafragma e a parede lateral do abdome.



   Após a fixação da tela, que ocupou todo o hipocôndrio esquerdo da paciente, o baço foi recolocado em sua posição anatômica após envolvê-lo com as duas abas de tela, previamente preparadas (Figura 5). Nesse momento, a tela é novamente grampeada, incluindo as duas abas da tela e a parede abdominal, criando-se um envoltório fixo para o baço de modo a não permitir sua migração para outros sítios da cavidade abdominal evitando-se, dessa forma, a possibilidade de torção e trauma direto.

Figura 5 - Após fixação da tela, que ocupou todo o hipocôndrio esquerdo da paciente, o baço foi recolocado em sua posição anatômica envolvido com as duas abas de tela, previamente preparadas.



   Essa técnica, da maneira como foi realizada, não havia sido descrita ainda, embora haja casos de fixação semelhante, tanto na literatura de cirurgia convencional como laparoscópica 3,4,5.
   O procedimento demorou 45 minutos para ser realizado. Não foram deixados drenos na cavidade e a paciente recebeu alta na manhã do primeiro dia pós-operatório.

EVOLUÇÃO

   A paciente recuperou-se plenamente da cirurgia. Atualmente, a paciente está bem, ainda recebendo TRE através de imiglucerase6, e leva uma vida normal.

CONCLUSÕES

   A fixação do baço é necessária nos casos de ptose esplênica e a correção por videolaparoscopia é um procedimento seguro.
   O acesso videolaparoscópico proporciona tempo de recuperação mais rápido, com menor tempo de internação, custo e trauma, além de um melhor aspecto estético.

 


ABSTRACT

Gaucher Disease is the most common among the glycosphingolipidosis. It's hereditary, autossomic-recessive and the first to have specific treatment. Enzyme Replacement Therapy (ERT) has changed the natural history of this disease. Most of its acute and chronic complications can now be avoided. Life-threatening complications are still seen in some patients, like the splenic ptosis. We describe a case of a splenic ptosis in a Gaucher Disease patient. She was submitted to spleen affixation through videolaparoscopy.

Keywords: SPLENIC PTOSIS/surgery; SPLANCHNOPTOSIS/surgery; SPLENOMEGALY/surgery; SPLEEN/surgery; GAUCHER DISEASE; LAPAROSCOPIC SURGERY.


Referências Bibliográficas

1. Gaucher Disease, NIH Technology Assessment Conference. JAMA 1996;275(7):548-553.
2. Giraldo P, Pérez-Calvo J, Cortés T, Civeira F, Félix DR, Enfermedad de Gaucher Tipo1: Característica Clínicas, Evolutivas y Terapêuticas em 8 casos. Sangre 1994;39(1):3-7.
3. Cohen MS. Laparoscopic Slenopexy for Wandering (Pelvic) Spleen. Surg Laparosc Endosc 1998;8:286-290.
4. Andley M. Internal Herniation of Wandering Spleen: A rare cause of recurrent abdominal pain. Int Surg 2000;85:322-324.
5. Nomura H. Laparoscopic Splenopexy for Adult Wandering Spleen: Sandwich Method with two sheets of absorvable knitted mesh. Surg Laparosc Endosc Percuteneous Techniques 2000;10:332-334.
6. Paula MTM. Tratamento da Doença de Gaucher: um consenso brasileiro. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia 2003;25(2):89-95.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

MARIO VICTOR DE FARIA NOGUEIRA
Av. Ruy Frazão Soares, 191 sala 203
CEP 22793-074
Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
RJ, Brasil
e-mail: mariovictor@ajato.com.br 


 

(1) Hematologista do Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (Hemorio) e Hospital dos Servidores do Estado, Ministério da Saúde - Rio de Janeiro, RJ.

(2) Cirurgião do Hospital dos Servidores do Estado, Ministério da Saúde - Rio de Janeiro, RJ.

(3) Hematologista do Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (Hemorio), Rio de Janeiro, RJ.

(4) Endocrinologista, Rio de Janeiro, RJ.

 

Recebido em 29/10/2003
Aceito para publicação em 13/11/2003